Resumo
Diferentes sociedades e culturas têm vários conhecimentos sobre as causas das doenças. Normalmente, as pessoas interpretam sua constituição corporal e respondem a fenômenos clínicos com base em conceitos, símbolos e protocolos de diagnóstico que acumularam e internalizaram por meio de suas experiências sociais e culturais. As representações sociais da saúde e da doença estão associadas a percepções da vida e da sociedade em diferentes culturas, o que poderia explicar a reação da sociedade brasileira ao novo conceito de tratamento proporcionado pela cultura da Medicina Tradicional Chinesa (MTC). A globalização tem aprofundado o grau de trocas culturais entre países e novos hábitos chineses ganharam crescente influência no Brasil. Após décadas de assimilação e adoção, a MTC no Brasil evoluiu para um estágio, a nível técnico e cultural, relativamente maduro.
Abstract
Different societies and cultures have various knowledge about the causes of diseases. Normally, people interpret their bodily constitution and respond to clinical phenomena on the basis of concepts, symbols and diagnostic protocols that they have accumulated and internalized through their social and cultural experiences. Social representations of health and disease are associated with perceptions of life and society in different cultures, which could explain the receptivity of Brazilian society to the new concept of treatment provided by the Traditional Chinese Medicine (TCM) culture. Globalization has deepened the degree of cultural exchange between countries, and new Chinese habits have gained increasing influence in Brazil. After decades of assimilation and adoption, TCM in Brazil has evolved to a relatively mature stage, both technically and culturally.
1 Introdução
A disseminação de qualquer cultura requer o cumprimento de certas condições, a disponibilidade de meios eficazes de disseminação e o aprimoramento contínuo do mecanismo operacional. Como mencionado por Sun Xupei em Teoria da Comunicação de Huaxia: Comunicação na Cultura Tradicional Chinesa (1997: 243), “A cultura é a soma dos vários feitos e realizações de cada nação através do trabalho físico e mental tanto na vida material como espiritual, a fim de sobreviver e se desenvolver, incluindo tanto a cultura material como a espiritual; a comunicação é um processo interativo de transmissão de símbolos de informação cultural… comunicação cultural é o processo pelo qual a cultura é transmitida e difundida”. Portanto, a promoção mundial da medicina tradicional chinesa é o melhor caminho para difundir a cultura chinesa e promover o intercâmbio cultural entre a China e outros países. Lou Yulie, estudioso da cultura chinesa, afirmou no seu discurso na Universidade de Tsinghua em 2017, “Se não compreende a Medicina Chinesa Tradicional, não compreende o espírito fundamental da cultura chinesa”.[1]
Ao compreender a tolerância e receptividade de um país às identidades culturais estrangeiras, é necessário considerar a capacidade da sua sociedade para romper a barreira cultural e para aceitar e integrar novos costumes. No Brasil a acupuntura é reconhecida como especialidade médica,[2] e graças a uma série de políticas e normatizações, a adoção da cultura da MTC tem progredido por meio de uma difusão e influência únicas. A acupuntura e a MTC foram incluídas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Sistema Único de Saúde (SUS) em 2006, por meio de uma portaria ministerial.[3]
Além da acupuntura, sob a estrutura do BRICS, após o sucesso da Reunião de Ministros da Saúde do BRICS e da Reunião de Alto Nível sobre MTC em julho de 2017, os líderes do BRICS (o presidente chinês Xi Jinping, o então presidente Michel Temer do Brasil, o presidente russo Vladimir Putin, o então presidente Jacob Zuma da África do Sul e o primeiro-ministro indiano Modi) assinaram a Declaração de Xiamen em 4 de setembro de 2017. A Declaração,[4] na parte V (Fortalecimento dos Intercâmbios e da Cooperação Humanística), afirma que,
Concordamos em fortalecer o papel dos países do BRICS na governança global da saúde, em particular na Organização Mundial da Saúde e nas agências das Nações Unidas, para melhorar o acesso a produtos médicos inovadores por meio de pesquisa e desenvolvimento, e para melhorar o acesso a medicamentos, vacinas, diagnósticos e outros produtos farmacêuticos e tecnologias e serviços médicos acessíveis, de qualidade, eficazes e seguros por meio da promoção de sistemas de saúde e financiamento da saúde. … Saudamos o resultado positivo da Reunião dos Ministros da Saúde do BRICS e da Reunião de Alto Nível sobre MTC, e apreciamos o estabelecimento de um mecanismo de longo prazo para intercâmbio e cooperação na MTC, com o objetivo de promover o aprendizado mútuo e a transmissão da MTC.
2 Análise das condições em que ocorreu a difusão da cultura de MTC no Brasil
A cultura é um fenômeno social, produto da criação e progressão dinâmica de longo prazo dos indivíduos e coletividades. Ao mesmo tempo, é um fenômeno histórico, por meio de usos e costumes que vão se consolidando por meio de práticas sociais. Em outros termos, a cultura se refere à história, geografia, costumes, hábitos tradicionais, estilo de vida, literatura e arte, normas de comportamento, modos de pensar e valores de um país ou nação. A cultura da MTC, nesse caso, também se refere ao modo de pensar, costumes tradicionais, normas de comportamento, modo de vida e de alimentação, literatura e arte e até mesmo a alguns eventos importantes na história do desenvolvimento da MTC. Segundo He Qiling,
A cultura da MTC é o sistema cultural da cultura tradicional chinesa que lida com a vida, a doença, a saúde e assim por diante. As visões fundamentais, os valores e os padrões de pensamento sobre a vida, a doença, a saúde, a higiene, a reprodução e assim por diante, e os conceitos médicos específicos, o diagnóstico e a psicologia do tratamento, a ética e a moral formados com base nessas ideias constituem o nível central da cultura da MTC. Esses atributos imateriais estão sempre incorporados na cultura da MTC, ou seja, termos conceituais, formas teóricas, expressões, métodos de pesquisa, comportamentos diagnósticos e terapêuticos, práticas de higiene, práticas médicas, tratamento médico, sistemas médicos, sistemas de educação médica, políticas e regulamentações etc., e condensados em um certo número de realizações materiais, como livros médicos, instrumentos médicos, equipamentos de higiene etc., que constituem a camada externa da cultura da MTC. (He 2001: 3)
A cultura e a teoria da MTC estão interligadas e integradas por meio das técnicas de diagnóstico e tratamento. A cultura da MTC incorpora o espírito da cultura tradicional chinesa e abrange a sabedoria do corpo saudável, que lhe é inata. A MTC é um tipo de ciência autêntica, local e original, que agrega valor baseado na cultura milenar da China. Portanto, ela reúne características em diferentes níveis. Em outras palavras, a construção do sistema cultural da MTC não pode ser separada da evolução cultural da China. Consequentemente, o sistema cultural moderno da MTC inclui conceitos de benevolência, harmonia, modéstia e sinceridade como fundamento; as práticas culturais de refinamento, prudência, rigor e honestidade como princípios dominantes; e os ambientes culturais de beleza, elegância e conveniência como elementos essenciais.
Tanto para a cultura tradicional chinesa, quanto para a MTC, a relação é particularmente próxima e interativa, com influências e restrições mútuas. A cultura tradicional chinesa é uma fonte importante para o desenvolvimento da MTC, e as três principais filosofias e visões de mundo do confucionismo, taoísmo e budismo garantem uma sólida base sistêmica à MT, imprimindo-lhe perspectivas peculiares.
As culturas de diferentes períodos históricos da história chinesa também influenciaram profundamente a criação e o desenvolvimento da MTC. Adicionalmente, a filosofia tradicional chinesa norteou a sua evolução. Por outro lado, a MTC oferece uma base prática efetiva para a cultura tradicional chinesa, uma vez que suas atividades práticas como ciência natural materializam novos e eficazes caminhos para o futuro desenvolvimento da cultura tradicional chinesa.
Um exemplo dessa simbiose é a alimentação que, sendo um dos pilares culturais da MTC, se transformou em ciência e cultura dietética. Ao longo do tempo, se integrou de maneira intrínseca à medicina tradicional que orienta dietas saudáveis sob o prisma da MTC. Assim, consegue prevenir e curar doenças, prolongando e melhorando a qualidade de vida. A alimentação é inerente à sobrevivência humana. Mas, no longo prazo, as sociedades desenvolveram experiências, atitudes e métodos particulares na medida em que interagiam com seus respectivos ecossistemas, escolhendo variados alimentos em diferentes circunstâncias, o que, na verdade, é a formação de uma consciência da “dietoterapia”.[5] Com a evolução dos seres humanos, sua dieta mudou gradualmente da busca aleatória e da escolha de alimentos pela fome para uma seleção intencional. Ou seja, começaram a descartar alimentos prejudiciais e a comer alimentos benéficos, se baseando muitas vezes no experimentalismo e na disseminação de relatos pessoais por parte de gerações anteriores ou no contato com outras sociedades. Essa luta pela sobrevivência fez com que o tratamento médico também evoluísse em paralelo às atividades dietéticas.
Segundo Sun (1997: 243), “as características da própria cultura proporcionam as condições possíveis e necessárias para a difusão, e outros fatores sociais e naturais facilitam a difusão”. As características únicas da própria cultura médica chinesa, incluindo aspectos fenomenológicos, filosóficos e metodológicos[6] distintos do Ocidente, proporcionam condições necessárias para a sua difusão a nível mundial, enquanto alguns fatores sociais baseados nas condições nacionais facilitam a difusão da cultura médica chinesa especificamente no Brasil.
2.1 Fatores característicos da cultura da MTC
A medicina tradicional chinesa se baseia nos princípios filosóficos de uma cultura ancestral, observando a interdependência, oposição e transformação mútua da fisiologia humana, patologia e patogênese. É muito diferente da medicina alopática ocidental. O conceito global de “correspondência entre o homem e a natureza”[7] é a base filosófica da teoria da medicina tradicional chinesa, em termos sintéticos, “o povo chinês presta atenção ao coletivo, enquanto os ocidentais prestam atenção ao individual” na medicina.
Na medida em que a medicina tradicional chinesa, como conceito cultural e método de tratamento com diferentes compreensões do corpo, saúde e doença, é adotada ao redor do mundo, inevitavelmente causa uma série de repercussões sociais. Os governos também precisam considerar a adoção de políticas e medidas correspondentes para a respectiva incorporação no seu sistema nacional de saúde. Ao mesmo tempo, no processo de disseminação e promoção da cultura da MTC, é inevitável encontrar uma série de problemas relacionados à inspeção normativa, autorizações para certificação profissional e a elaboração de normas do serviço médico. A disseminação da cultura da MTC aproxima diferentes hábitos pessoais, costumes culturais e percepções médicas singulares, aprimorando a comunicação transcultural.
2.2 Fatores sociais no Brasil
A introdução da cultura de MTC no Brasil e a sua disseminação generalizada pode ser dividida, de um modo geral, em três aspetos:
Em primeiro lugar, existe no Brasil uma forte aceitação da cultura da MTC. Tratamentos à base de produtos naturais (ou tratamentos alternativos) são comumente utilizados na medicina tradicional brasileira. Um exemplo é a utilização de plantas medicinais locais in natura ou fitoterápicos, o que é similar ao processo de diagnóstico e métodos de tratamento, incluindo decocções, da medicina tradicional chinesa ou com medicamentos patenteados na China. Outra similitude é o tradicional uso da medicina homeopática no Brasil (Le Goff, 1985), embora seus princípios e filosofia sejam distintos da MTC.[8] Portanto, a disseminação da cultura de MTC no Brasil, país com uma das maiores biodiversidades do mundo, não representa a introdução de uma cultura médica absolutamente distinta, que poderia originar um choque cultural, mas sim a adoção de conhecimentos, técnicas e produtos complementares, que encontram certo sentido de identidade na própria cultura nacional brasileira.
Com o aprofundamento das relações diplomáticas entre a China e o Brasil, intercâmbio entre os dois povos e um crescente número de imigrantes e estudantes nos respectivos países, a cultura da MTC e os seus tratamentos entraram gradualmente no cotidiano do povo brasileiro. A acupuntura, o Tui Na e outros tratamentos médicos chineses têm sido amplamente reconhecidos em variadas localidades brasileiras.
O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, sofria de dores provocadas pela bursite nos ombros. Após tentar vários métodos sem sucesso, encontrou a cura por meio da acupuntura da MTC.[9] Isto o fez reconhecer a eficácia do tratamento e recorrer a ele em diferentes oportunidades.
A ex-presidente brasileira Dilma Rousseff também é adepta dessa terapia e falou abertamente sobre os benefícios dos tratamentos de MTC. Segundo ela, “A acupuntura me dá mais energia e combate algumas dores”.[10] A notoriedade propiciada pelos tratamentos desses dois presidentes brasileiros induz um efeito de celebridade na medida em que se multiplicaram reportagens jornalísticas. Isso desencadeou uma onda que levou uma grande quantidade de brasileiros na época a também procurar esse tipo de terapia. A nova “mania de acupuntura” teve o efeito reflexo de promover ainda mais a MTC como um todo, se aproveitando da publicidade nos meios nacionais de comunicação e da popularidade dessas lideranças políticas. Tal tendência incentivou a formação de cada vez mais profissionais habilitados na técnica e a abertura de um grande número de clínicas espalhadas pelo país oferecendo o serviço que passou a ser coberto por uma quantidade crescente de planos de saúde, públicos e particulares.
Em segundo lugar, não é incomum que na sociedade brasileira haja eventuais ceticismos ou dúvidas a respeito da filosofia e soluções propostas pela medicina ocidental. Analisando essa história de disseminação, não é raro identificar uma “crise de confiança” no sistema médico ocidental como um fator identificado há décadas[11] para a propagação da cultura da MTC no Brasil. O desenvolvimento da medicina brasileira foi marcado pela busca e introdução de competências médicas abrangentes e suplementares e, como mencionado anteriormente, pela adoção em 3 de maio de 2006 de uma Política Nacional de Práticas Integrativas.[12] A cultura médica de viés mais humanista foi uma evolução natural no contexto sincrético e miscigenado da cultura brasileira, que já possuía, alternativamente, raízes nas tradições medicinais de culturas indígenas e africanas, na medida em que o sistema médico ocidental não conseguia resolver todos os problemas clínicos gerados no âmbito da saúde pública. A MTC tem uma longa e rica tradição, cada vez mais conhecida e estudada pela sociedade brasileira que busca alternativas eficazes e sem necessariamente os efeitos colaterais comumente provocados por medicamentos alopáticos. Isto porque, ao invés de utilizarem fórmulas químicas que também agridem partes sadias do organismo, a MTC procura harmonizar a própria fisiologia do nosso sistema corpóreo e energético, por meio da ativação de nossos meridianos, por exemplo.
Finalmente, a globalização é a chave da disseminação da cultura da MTC, não só no Brasil, mas em boa parte do mundo. A acupuntura, por exemplo, é reconhecida em 113 Estados-Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) e continua sendo a forma mais comum de medicina tradicional de acordo com o relatório global da OMS de 2019 sobre medicina tradicional e complementar.[13] Como disse o estudioso chinês Zhang Baijia, o processo diplomático da China nas últimas décadas está a “mudar a si próprio e a influenciar o mundo”.[14] A globalização não só afetou profundamente a economia e o modo de vida do povo chinês, mas também fortaleceu a influência internacional da China, estimulando a prática da MTC.
China e Brasil vêm desenvolvendo uma ampla gama de intercâmbios, intensificando a cooperação mútua e expandindo o leque de setores de colaboração bidirecional. Em 2008 e 2016, respectivamente, a China e o Brasil sediaram os Jogos Olímpicos e usaram a Cerimônia de Abertura para mostrar suas respectivas civilizações e patrimônios, a partir dos quais se pode aquilatar a riqueza cultural das duas nações, facilitando a paulatina aproximação e interação entre seus governos e povos. Na medida em que evoluíram essa aproximação e maior conhecimento a respeito da cultura chinesa, apesar da distância geográfica entre os dois países, se iniciou naturalmente um processo de gradual absorção cultural e os terapeutas e médicos brasileiros começaram a aceitar e aprender as competências e métodos da MTC. O sinólogo brasileiro José Roberto Teixeira Leite, em seu livro A China no Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na arte e na sociedade do Brasil, analisa sistematicamente a influência da cultura chinesa em todos os aspetos do Brasil, argumentando que os elementos chineses estão incorporados na vida brasileira, dando à cultura brasileira um rico caráter oriental.
2.3 Reconhecimento da MTC no SUS do Brasil
O Brasil foi um dos primeiros países da América Latina a incorporar a MTC em seu sistema público de saúde. Desde que o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO) certificou “acupunturista” como uma profissão de fisioterapia em 1985, a promoção e desenvolvimento da cultura de MTC no Brasil se tornou cada vez mais padronizada, e uma série de leis e regulamentos relevantes sobre práticas, além de um sistema curricular da indústria de MTC, foram publicados. Em 2006, o Ministério da Saúde brasileiro editou a Portaria nº 971/2006, que incorporou a medicina tradicional chinesa no Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, incluindo acupuntura, medicina herbácea chinesa, terapia auricular, Ventosaterapia e Tai Chi Chuan. Em 2017, os tratamentos médicos de cidadãos brasileiros pelo SUS que utilizaram tais terapias da MTC chegaram a um total de 1.400.000. Em 2018, o Brasil incorporou 10 novas práticas integrativas no SUS. No contexto da adoção de práticas integrativas, até hoje em dia, há vinte e nove tratamentos da MTC cobertos pelo sistema SUS.
Embora o Sistema Único de Saúde tenha adotado a acupuntura e a homeopatia, a oferta das terapias depende do gestor municipal. Em 2022, a fim de garantir ampla oferta dos dois tipos de terapia no sistema público, o senador Marcos do Val (Podemos-ES) propôs um projeto de lei federal[15] que determina as suas ofertas no SUS. A proposta determina a inclusão desses recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais na tabela de ações e serviços editada pelo Ministério da Saúde.
“Após os vários avanços sanitários e de gestão obtidos pelo SUS desde sua criação, sabemos que a saúde pública ainda apresenta vários gargalos na atenção aos pacientes, já que muitos não conseguem acesso a atendimentos necessários à adequada recuperação de sua saúde, embora muitos deles não sejam sequer de alto custo ou complexidade”, aponta o senador.[16] Ou seja, o senador entende que a oferta dessas terapias não pode depender da vontade subjetiva do gestor municipal.
Porto Alegre, cidade pioneira no estado do Rio Grande do Sul a oferecer atendimento de acupuntura pelo SUS, há 35 anos, e a segunda cidade do país, é um caso de sucesso na adoção da terapia na rede pública. Conforme a coordenadora do ambulatório de Homeopatia e Acupuntura do Centro de Saúde Modelo, a médica Janete Bandeira, a técnica auxilia no tratamento complementar de diversas doenças, especialmente em casos de dor. “É fundamental que esse atendimento seja acessível pelo SUS, pois ajuda a tratar diversas doenças, reduzindo o uso de medicamentos com uma resposta eficaz”.[17] Segundo ela, 95 % dos pacientes procuram o serviço para alívio da dor. Para ter acesso ao atendimento, moradores da capital atendidos no SUS devem procurar a unidade de saúde de referência e solicitar encaminhamento, que pode ser feito pela própria equipe médica.
3 Análise das formas de divulgação e promoção da cultura de MTC no Brasil
A China e o Brasil estabeleceram formalmente relações diplomáticas em 15 de agosto de 1974, e uma parceria estratégica, em 1993 (Wang, 1981). A relação entre os dois países foi aprofundada em 2012 por meio de uma parceria estratégica global. A cooperação intergovernamental mais antiga envolvendo a medicina tradicional chinesa entre a China e o Brasil remonta à década de 1980. Os dois países assinaram uma carta de intenções sobre a promoção de intercâmbios científicos e tecnológicos e cooperação no domínio da saúde em Brasília, em 1983. Um importante ponto de inflexão ocorreu em 2009, quando o então Ministro da Saúde no Brasil, José Gomes Temporão, visitou Pequim.[18] Desde então, a cooperação médica e sanitária entre a China e o Brasil e a promoção da cultura da medicina tradicional chinesa avançaram significativamente. Em 2011, os dois governos assinaram um Plano de Ação Conjunta (2010–2014), que estabeleceu ações e estratégias de cooperação no campo da medicina e saúde naquele quadriênio, marcando uma nova era para a promoção e intercâmbio da cultura da MTC no Brasil. Posteriormente, os dois países aprofundaram ainda mais o processo de promoção e disseminação da cultura da MTC no Brasil (Zha & Duan, 2019) a nível governamental, e formularam políticas e regulamentos correspondentes ilustrados a seguir para melhorar o caminho de promoção e disseminação.
3.1 Processo geral de promoção da cultura MTC no Brasil
Até a década de 1970, a acupuntura ainda era vista de forma polêmica no Brasil, oscilando entre os rótulos de “tecnologia médica avançada” e “charlatã”. O fisioterapeuta e massoterapeuta Friedrich Johann Spaeth, originário de Luxemburgo e naturalizado brasileiro, contribuiu decisivamente para a promoção da MTC, especialmente da acupuntura. Em 1958 ele ministrou o primeiro treinamento em acupuntura e MTC para médicos e profissionais não-médicos.[19] Junto com os médicos Ermelino Pugliesi e Ary Telles Cordeiro, fundou em 1961 a Sociedade Brasileira de Acupuntura e Medicina Oriental, considerada como a primeira clínica de acupuntura no Brasil. Em 1972, fundou a Associação Brasileira de Acupuntura.
Naquela altura, entretanto, o Conselho Federal de Medicina do Brasil considerava a terapia com acupuntura não científica e proibiu seu uso, enquanto tomava uma série de medidas coercitivas, ameaças, prisões e processos legais contra acupunturistas sem formação médica. O professor Spaeth, juntamente com o Instituto de Acupuntura de São Paulo, a Associação Brasileira de Acupuntura e a Federação Sul-Americana de Acupuntura, recorreu aos meios de comunicação brasileiros, afirmando que o motivo para o grande número de charlatões não era o tratamento de acupuntura em si, mas a falta de regulamentação da atividade no país. Foi somente em 1977, quando o Ministério do Trabalho brasileiro, a Organização Internacional do Trabalho e a UNESCO chegaram a um acordo, que a profissão de acupunturista foi oficialmente reconhecida no Diário Oficial do governo brasileiro, e a acupuntura chinesa continuou a crescer e se desenvolver no Brasil.[20]
Em 1985, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Brasil decidiu oferecer 1.200 horas de treinamento profissional em acupuntura para fisioterapeutas. No ano seguinte, o Conselho Federal de Biomedicina regulamentou as terapias de acupuntura. Em 1989, foi criado o Instituto de Medicina Tradicional Popular da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro e, desde então, a acupuntura e a fitoterapia chinesa foram incorporadas em todos os níveis de hospitais do estado do Rio de Janeiro. Em 1995, o Conselho Federal de Medicina classificou a acupuntura como uma especialidade médica e, em 1998, o Ministério da Saúde do Brasil incorporou a acupuntura ao sistema médico do SUS. Além disso, muitas organizações profissionais no Brasil, incluindo a Associação Brasileira de Médicos, a Associação de Ciências Biomédicas, a Associação de Educação Física, a Associação de Fonoaudiólogos, a Associação de Dentistas e a Associação de Enfermeiros reconheceram a acupuntura como uma especialidade de educação profissional continuada no Brasil. Com o aumento do número de profissionais que praticam a acupuntura, o Brasil iniciou seu primeiro programa de residência médica em acupuntura terapêutica em 2002.[21]
Diante dessa sequência de eventos, é possível afirmar que a disseminação da cultura da medicina tradicional chinesa no Brasil não gerou um impacto cultural forte e irreconciliável. Ao contrário, desencadeou uma série de mobilizações pessoais, profissionais e sociais de forma proativa. Isto levou agências governamentais e os grupos sociais brasileiros a aprimorar seus sistemas no processo de desenvolvimento e disseminação da cultura da MTC no Brasil, completando assim o modelo “conflito-avaliação-seleção-adaptação”. A discussão sobre a cultura da MTC deixou de ser sobre sua eficácia e cientificidade como método de tratamento, e se voltou para a regulamentação interna da profissão, ou de como identificar os acupunturistas profissionais, por exemplo. A evolução da cultura da MTC no Brasil reafirma que o desenvolvimento harmonioso da cultura estrangeira em um determinado país depende, em grande parte, do fato de os valores culturais dominantes do país serem mais tolerantes, receptivos, sensíveis e representativos de culturas heterogêneas.
A terminologia básica na medicina tradicional chinesa, de acordo com seus padrões internacionais, havia sido traduzida para o inglês em 2007. Na sequência, o Departamento de Tradução da Federação Mundial das Sociedades de Medicina Chinesa também lançou em português o Padrão Internacional da Nomenclatura Básica da Medicina Chinesa. Com a padronização da terminologia da MTC no Brasil e em outros países de língua portuguesa, o ensino e divulgação das disciplinas clínicas e campos de investigação da MTC no Brasil foram melhorados, e a qualidade e eficiência da troca de informação interna na indústria da MTC foi aprimorada, permitindo a contínua propagação de sua cultura no Brasil.[22]
3.2 China apóia Macau como importante plataforma para a promoção da cultura da medicina tradicional chinesa nos países de língua portuguesa
Desde 20 de dezembro de 1999, quando a soberania de Macau foi devolvida por Portugal à República Popular da China, a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) desempenhou um papel relevante como plataforma para o intercâmbio cultural entre a China e os países lusófonos. Diferentes campos culturais, incluindo a medicina tradicional chinesa, incrementaram intercâmbios e canais de comunicação. As duas principais plataformas de Macau na promoção da cultura da MTC são o Parque Científico e Industrial de Medicina Tradicional Chinesa para a Cooperação entre Guangdong e Macau, e o Centro de Cooperação de Medicina Tradicional da OMS.
Em abril de 2011, como primeiro projeto de implementação do Acordo-Quadro de Cooperação Guangdong-Macau, o Parque Científico e Industrial de Medicina Tradicional Chinesa para a Cooperação entre Guangdong–Macau foi lançado oficialmente em Hengqin. Em 22 de outubro de 2018, o Presidente Xi Jinping deu pessoalmente orientações sobre o desenvolvimento da MTC e a construção do parque quando o visitou. Ele salientou que, “a MTC é o tesouro da civilização chinesa, e é necessário explorar profundamente a riqueza da MTC, promovendo a integração da produção, educação e investigação, a industrialização e modernização da MTC e mostrando a MTC para o todo mundo”.[23] O Parque criou oficialmente o Centro de Intercâmbio e Cooperação Internacional em junho de 2015, sendo o ponto de entrada dos países de língua portuguesa para realizar atividades como o registro e comércio internacional e a formação de profissionais. Combinado com o modelo internacional de promoção cultural “medicina com medicamento”, o Parque continuará a expandir a cooperação da MTC com diferentes países e regiões em torno dos países de língua portuguesa.
A 18 de agosto de 2015, se realizou em Macau o Fórum Internacional de Medicina Tradicional e a cerimônia de criação do Centro de Cooperação de Medicina Tradicional da OMS. O Centro e a sede da OMS em Genebra, na Suíça, estão empenhados na formação dos profissionais da MTC, na cooperação em matéria de qualidade e segurança dos medicamentos e na promoção conjunta da integração da MTC no sistema de saúde pública em países de todo o mundo. Nesse sentido, Wang Guoqiang, Subdiretor da Comissão Nacional de Saúde e Planejamento Familiar e Diretor da Administração Estatal de Medicina Tradicional Chinesa, assinou um Acordo de Cooperação Complementar na área de MTC com Alexis Tam, Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura do Governo da RAEM. O Acordo estabelece as bases jurídico-institucionais para que ambos os lados a desempenhem suas missões, apoiando Macau a desempenhar um papel estratégico na condução de intercâmbios e de cooperação por meio da MTC entre países envolvidos na Iniciativa do Cinturão e Rota, em particular com os países de língua portuguesa.
4 Evolução da atitude da sociedade brasileira em relação à cultura MTC
De acordo com Sun (1997:255), “A difusão cultural é um processo pelo qual uma cultura atravessa outra região social para alcançar a cultura dessa região, e depois passa pelo processo de conflito, avaliação, seleção, adaptação e integração. Só então é que o processo de difusão se completa”. No processo de difusão cultural, existe a possibilidade de conflito cultural, sendo este último a contradição e o confronto entre culturas de naturezas diferentes, ou seja, o confronto e a integração entre a cultura tradicional local e a cultura heterogênea estrangeira. Marilene Cabral do Nascimento, professora associada do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, compilou artigos sobre acupuntura e moxabustão na grande mídia nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo de 1974 a 1996 e realizou um estudo detalhado da promoção da cultura da acupuntura e da moxabustão no Brasil. Em seu livro “De Panacéia Mística a Especialidade Médica: a Acupuntura na Visão da Imprensa Escrita”, publicado em 1997, ela mencionou que o processo de divulgação da acupuntura chinesa no Brasil pode ser resumido em três estágios: ceticismo, negação e reconhecimento.[24]
4.1 Análise das atitudes do meio acadêmico e do público brasileiro em relação à cultura da MTC
A avaliação cultural é um indicador importante para medir se a comunicação tem alta qualidade e ocorre de maneira eficaz em relação aos interlocutores, a quem caberá fazer julgamentos de valor sobre a cultura, como certo ou errado, bom ou ruim, ou afirmativo ou negativo. No processo de comunicação intercultural, diferentes culturas entram em contato umas com as outras, se comunicam e colidem entre si, de modo que as pessoas possam reconhecer e entender essa cultura estrangeira, e avaliá-la adequadamente. Este artigo se concentra na coleta e análise de dados sobre as avaliações culturais da MTC da comunidade acadêmica brasileira e do público em geral, a fim de fornecer suporte empírico para a disseminação de alta qualidade da cultura da MTC no Brasil.
O aplicativo utilizado para a análise estatística dos dados neste artigo foi o CiteSpace, desenvolvido por Chao-Mei Chen (2020). A fonte de dados foi o site Web of Science (WOS), e o escopo da pesquisa foram as publicações de periódicos acadêmicos de acordo com parâmetros estabelecidos pela primeira autora deste trabalho. Na página “Professional Search” da pesquisa avançada da WOS, a pesquisa bibliográfica foi realizada com a expressão “traditional chinese medicine”, o período de pesquisa foi definido como “1995 a 2023”, o país foi definido como “Brasil” e a data de coleta foi 4 de abril de 2023. Os dados foram filtrados e desduplicados para obter 170 dados válidos, que foram importados para o Citespace e convertidos em formato de dados para análise.
A Figura 1 mostra o volume anual de publicações de pesquisas sobre MTC no Brasil de 1995 a março de 2023. Em particular, de 2020 a 2021, a quantidade de estudos sobre MTC no Brasil continuou a aumentar, refletindo o interesse de especialistas e acadêmicos brasileiros no papel da medicina tradicional chinesa na resposta bem-sucedida da China à epidemia de coronavírus. No entanto, o número ainda limitado de artigos indica que o estudo científico sobre MTC no Brasil ainda é um campo relativamente novo, havendo espaço para melhorias em termos de conteúdo e quantidade de pesquisa.

Distribuição temporal das publicações anuais sobre pesquisa em medicina tradicional chinesa no Brasil (1995–2023.03).
A Figura 2 resume a distribuição de campos específicos de pesquisa em MTC no Brasil nos últimos 30 anos. Do total de artigos, 43 exploraram a Medicina Integrativa e Complementar e 37, a Farmacologia, perfazendo as duas primeiras posições. Além disso, a quantidade de publicações em Química (22), Bioquímica/Biologia Molecular (12), Ciências Vegetais (12), Toxicologia (10), Neurociências (8) e Saúde Ocupacional Ambiental Pública (8) reflete o interesse demonstrado pela comunidade médica brasileira na acupuntura e no valor medicinal da fitoterapia chinesa. A pesquisa geral em MTC no Brasil ainda está concentrada no campo da medicina complementar, indicando a necessidade de se fortalecer a pesquisa transversal multidisciplinar sob múltiplas perspectivas.

Distribuição das 10 principais direções de pesquisa relacionadas à medicina tradicional chinesa no Brasil (1995–2023.03).
A Figura 3 mostra os dados das dez principais instituições de pesquisa em termos de quantidade de publicações. Como pode ser visto na Figura 3, quase todas as instituições brasileiras com uma alta quantidade de publicações no campo de pesquisa em MTC são universidades, de acordo com as “10 melhores universidades da América Latina” publicadas pela Times Higher Education 2022, nas quais estão listadas a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal de São Paulo, a Universidade Estadual de Campinas e a Universidade Federal de Santa Catarina.

As 10 principais instituições do Brasil em termos de publicações de pesquisa sobre Medicina Tradicional Chinesa (1995–2023.03).
O que se deve observar que essas universidades brasileiras já estão “bem integradas” à MTC: a Universidade de São Paulo (USP) faz parte do Consórcio de Inovação em Medicamentos Naturais “Um Cinturão, Uma Rota” e dos Países Lusófonos e, nos últimos anos, tem contribuído para a promoção de intercâmbios acadêmicos e cooperação entre a China e os Países Lusófonos nos campos da medicina. Os resultados de um estudo clínico realizado em conjunto pela Faculdade de Odontologia da Universidade de Campinas e pela Escola de Acupuntura da Associação Médica Brasileira mostraram que a acupuntura pode reduzir significativamente os sintomas de dor e melhorar a abertura bucal de pacientes com disfunção da articulação mandibular, o que melhora muito os resultados do tratamento clínico. A Universidade Federal de Santa Catarina se comprometeu nos últimos anos a convidar especialistas da China em áreas relacionadas à MTC para ministrar cursos especializados no Brasil, especialmente o uso da acupuntura auricular para condições clínicas comuns, incluindo insônia, tabagismo, obesidade, ansiedade e dor nas costas. Isso indica que essas cinco universidades se têm envolvido profundamente na combinação entre o sistema SUS e a cultura da MTC no Brasil nos últimos anos e deverão se tornar a espinha dorsal da promoção e disseminação da cultura da MTC no Brasil no futuro.
As palavras-chave foram analisadas para derivar a catalogação da pesquisa e as respectivas tendências de desenvolvimento. Outras configurações permaneceram inalteradas, os são selecionados como palavras-chave e o software CiteSpace é executado para extrair as estatísticas de ocorrência de palavras-chave, conforme mostrado na Figura 4.

Mapeamento visual da co-ocorrência de palavras-chave na pesquisa sobre medicina tradicional chinesa no Brasil (1995–2023.03).
Como pode ser visto na Figura 4, as expressões “medicina tradicional chinesa”, “constituintes químicos”, “acupuntura”, “atividade antimicrobiana” e “neurônios” têm alta frequência de co-ocorrência e alta centralidade de mediação, sugerindo que são típicos e de maior interesse para a comunidade acadêmica brasileira no campo de pesquisa da MTC.
4.2 Análise da atitude dos brasileiros em relação à cultura da MTC
A comunicação da cultura da MTC deve incluir não apenas a promoção externa, mas também a integração local, entrando na vida cotidiana da população local. Atualmente, a terapia com acupuntura é um dos sinais evidentes da integração da cultura da MTC no Brasil, e a maneira como a população local vê a acupuntura e a cultura da MTC que ela contém é um dos indicadores relevantes da qualidade da comunicação intercultural.
Em 13 de julho de 2022, Hui Qing, vice-presidente da Federação Mundial das Sociedades de Acupuntura e Moxabustão, disse em uma entrevista ao Guangming.com que “os brasileiros têm uma alta aceitação da acupuntura”. Algumas pessoas também recorrem regularmente ao tratamento de acupuntura para cuidar da saúde, “especialmente alguns apresentadores de TV em São Paulo, que gostam de usar a acupuntura, a MTC e a massagem Tui Na para relaxar e regular o corpo e a mente, a fim de manter a melhor condição em um ritmo de trabalho estressante”.[25] Além disso, tanto a ex-presidente Dilma Rousseff, quanto o presidente Lula receberam tratamentos de acupuntura na MTC. O médico eleito vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, também trata pacientes com acupuntura e chegou a aparecer em programas de TV no Brasil demonstrando a técnica ao vivo.[26] Desse ponto de vista, o “efeito celebridade” também desempenhou um papel positivo na promoção da cultura da MTC.
Em 23 de fevereiro de 2017, a OMS publicou uma pesquisa[27] sobre depressão e ansiedade, as duas doenças psiquiátricas mais comuns no mundo. O Brasil foi identificado como líder mundial em transtornos de ansiedade e quinto em taxas de depressão. A pandemia do coronavírus, entendida como um dos fatores para esse quadro, resultou em dificuldades de emprego e um aumento acentuado do estresse psicológico devido a uma diminuição significativa dos níveis de renda e da qualidade de vida. Além dos métodos tradicionais e do uso de medicamentos, cada vez mais pacientes brasileiros estão buscando a acupuntura como tratamento complementar. Estudos realizados pelo National Center for Biotechnology Information (NCBI), nos Estados Unidos, demonstraram que a acupuntura é eficaz no tratamento da ansiedade e da depressão, com melhores resultados clínicos principalmente para pacientes do sexo feminino. Como consequência, a demanda real por tratamento e alívio de tais sintomas, bem como a cobertura jornalística da terapia com acupuntura por instituições profissionais e pela grande mídia, tornaram a acupuntura chinesa geralmente reconhecida e respeitada pelo público brasileiro. Atualmente, existem cerca de 10 universidades e faculdades[28] oferecem cursos de graduação ou pós-graduação em acupuntura no Brasil, e dezenas de milhões de brasileiros recebem tratamento com essa técnica.
5 Perspectivas para o desenvolvimento futuro da promoção da cultura da MTC no Brasil
Este artigo indica o prognóstico sobre a futura promoção e disseminação da cultura da MTC no Brasil, classificando os canais e resultados de disseminação existentes. Desde o surto da epidemia de coronavírus no início de 2020, tem havido frequentes intercâmbios e cooperação entre a China e o Brasil sobre como aplicar a MTC para responder efetivamente à epidemia. Na era “pós-epidemia”, a cooperação entre os dois países na promoção da cultura da MTC ainda é promissora, e este artigo se concentra em três aspectos: a promoção da MTC no Brasil, o treinamento de talentos em instituições de ensino superior e a exportação de medicamentos chineses patenteados.
5.1 Promoção da MTC no Brasil
Já existem seis universidades médicas no Brasil que oferecem cursos de acupuntura e centenas de cursos de especialização[29] em acupuntura, formando a cada ano uma média de mais de 30.000 acupunturistas profissionais. Em 2021, havia cerca de 150.000 acupunturistas oficialmente registrados no Brasil, dos quais cerca de 80 % são médicos profissionais formados em várias universidades médicas, e a maioria deles é de nacionalidade brasileira. Cerca de 500 hospitais públicos e mais de 2.500 clínicas em todo o Brasil têm salas de tratamento de acupuntura, oferecendo serviços gratuitos de tratamento de acupuntura à população.
Em setembro de 2019, a “Base de Cooperação Internacional China-Brasil de Produtos de MTC” foi inaugurada em São Paulo pela Daming Company e pelo Hospital da Universidade de Medicina Tradicional Chinesa de Gansu. Vários médicos chineses renomados foram convidados a praticar no Brasil, para que serviços de tratamento idênticos aos praticados na China pudessem também ser oferecidos localmente. A pedido da Associação Brasileira de Medicina Tradicional Chinesa e Acupuntura, a Federação Mundial de Associação de Acupuntura e Moxabustão realizou em 20 de agosto de 2020 uma teleconferência entre especialistas em MTC e ocidental e especialistas médicos brasileiros sobre a prevenção e controle da epidemia de coronavírus, para compartilhar experiências exitosas no combate à pandemia em seus respectivos campos. Entre os participantes estiveram Zhang Boli, acadêmico da Academia Chinesa de Engenharia, Yang Longhui, vice-presidente da Academia Chinesa de Medicina Tradicional Chinesa, Liu Boyan, presidente da Federação Mundial da Associação de Acupuntura e Moxabustão, Li Guangxi, membro do Grupo de Especialistas em Epidemia de Coronavírus da Comissão Nacional de Saúde, e especialistas médicos chineses e brasileiros da Faculdade de Medicina Tradicional Chinesa de Hebei, da Universidade Federal de Goiás, da Universidade Federal Fluminense, da Universidade Federal de Santa Maria, do Instituto Brasileiro de Acupuntura e Medicina Chinesa e de muitas outras universidades.
No futuro, por meio da disseminação da MTC, especialmente da cultura da acupuntura no Brasil e do treinamento profissional de médicos locais em MTC, a promoção aprofundada da terapia de acupuntura e moxabustão será o ponto de partida para criar uma plataforma de cooperação madura e diversificada e um canal para a disseminação e promoção de outros métodos de terapia da MTC, como Tui Na, terapia alimentar, Tai Chi e Qigong no Brasil, bem como a forma de usar a MTC e ocidental combinadas para lidar com outras epidemias.
5.2 Cooperação no ensino de MTC em instituições de ensino superior
Em 25 de outubro de 2019, o presidente chinês Xi Jinping realizou uma reunião com o então presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que estava na China em uma visita de Estado. Durante a reunião, os dois chefes de estado testemunharam a assinatura de vários documentos de cooperação bilateral e anunciaram a criação de um Instituto Confúcio de MTC na Universidade Federal de Goiás (UFG) no Brasil. Existem dez Institutos Confúcio no Brasil, mas o da UFG é o primeiro e único Instituto Confúcio de Medicina Chinesa, tornando-o uma importante plataforma para a China promover a cultura da MTC no país. Atualmente, além de ensinar a língua chinesa, os professores do Instituto Confúcio também ministram cursos básicos de língua chinesa na Faculdade de Artes e Ciências da Universidade e instruções práticas de acupuntura na Escola de Enfermagem. Os alunos têm demonstrado particular interesse em Tui Na e em outros métodos médicos chineses. Os professores do Instituto Confúcio também realizam workshops semanais de serviço público gratuitos para os professores e funcionários da universidade e popularizam a cultura da MTC, dando-lhes a oportunidade de experimentar o Tui Na, a acupuntura e outras especialidades médicas chinesas. No futuro, a Universidade Federal de Goiás planeja aproveitar a cooperação existente com a Faculdade de Medicina Tradicional Chinesa de Hebei e desenvolver uma série de cursos e especializações relacionados à cultura da MTC.
Além do Instituto Confúcio de Medicina Chinesa, a Oficina Portuguesa de Luban, estabelecida em conjunto por Tianjin e a cidade portuguesa de Setúbal, também é um marco importante na disseminação e no intercâmbio da cultura da MTC nos países de língua portuguesa. Em maio de 2019, Pedro Dominguinhos, Presidente do Instituto Politécnico Português de Setúbal (IPS), visitou a Universidade de Medicina Tradicional Chinesa de Tianjin e discutiu o progresso do projeto conjunto de educação em acupuntura e massagem entre as duas universidades, treinamento de professores, intercâmbio de estudantes, seminários acadêmicos e, durante a reunião com a delegação de Tianjin, o Presidente do IPS prometeu compartilhar a experiência bem-sucedida do Luban Workshop no IPS com o Brasil e outros países de língua portuguesa na África. Depois disso, uma delegação da Universidade Federal de Santa Catarina visitou o IPS em janeiro de 2020 e demonstrou grande interesse na oficina Luban, lançando as bases para a futura cooperação entre a China e o Brasil na criação da “Oficina Luban de MTC no Brasil”.
Devido ao impacto da Covid-19, os intercâmbios transfronteiriços entre funcionários chineses e brasileiros foram prejudicados, mas a demanda por treinamento de estudantes locais de MTC no Brasil não diminuiu. No futuro será necessário atualizar digitalmente o modelo de compartilhamento de recursos de ensino e dados de pesquisa da MTC para oferecer uma confiabilidade tecnológica para a cooperação no ensino superior da MTC e o intercâmbio cultural entre os dois países. Na “era pós-epidemia”, os dois países precisam garantir a qualidade do ensino da cultura da MTC nas universidades brasileiras, tanto quanto possível, elaborando cursos de instrução, realizando seminários regulares de palestras online e criando bancos de dados compartilhados a partir das necessidades reais de treinamento dos alunos.
5.3 Exportação de medicamentos chineses patenteados
Nos últimos anos, o governo chinês tem prestado mais atenção à disseminação da MTC no exterior e, em janeiro de 2022, o governo lançou o “Plano de desenvolvimento para promover a integração de alta qualidade da MTC no “Cinturão e Rota” (2021–2025)”, que visa melhorar de forma abrangente a qualidade e o nível de participação da MTC naquela iniciativa. Em março do mesmo ano, o Escritório Geral do Conselho Nacional divulgou o “14° Plano Quinquenal para o Desenvolvimento da MTC”, que também menciona a aceleração do desenvolvimento aberto da MTC e a promoção da integração de alta qualidade da MTC na iniciativa “Cinturão e Rota”. Fang Fang, diretora do Base de Treinamento para Tratamento de Medicina Chinesa no Brasil, vem trabalhando há mais de 10 anos para montar uma equipe de comunicação e negociação com instituições brasileiras e chinesas, com o objetivo de fazer com que as autoridades brasileiras reconheçam gradualmente os princípios e práticas da MTC. Mais de 50 tipos de medicamentos chineses, incluindo as cápsulas de Lianhua Qingwen,[30] já foram licenciados para importação no Brasil.
No entanto, ainda há muitos gargalos para a introdução e promoção da MTC no Brasil. Uma grande quantidade de produtos da MTC ainda enfrenta dificuldades de registro e acesso como “medicamentos”, e só podem ser administrados como “complementos alimentares”. Em resposta a essa situação, o governo chinês deve acelerar o aprimoramento do layout de alto nível, incentivando estrategicamente as empresas chinesas de medicina de ponta a acelerar o processo de padronização de medicamentos proprietários relevantes. Além disso, a fortalecer a comunicação e a coordenação com agências do governo brasileiro para expor a legislação de MTC e promover o reconhecimento mútuo dos padrões de produtos medicinais chineses entre a China e o Brasil. Desta forma, as empresas farmacêuticas relevantes devem acelerar o processo de inovação tecnológica e desenvolvimento de produtos e promover a integração dos recursos médicos chineses e ocidentais para aumentar sua competitividade internacional.
6 Considerações Finais
No processo mundial de desenvolvimento multicultural, a cultura chinesa só pode revelar suas atratividades singulares que a distinguem de outras culturas no processo de colisão, intercâmbio e mistura com culturas estrangeiras, para que possa se tornar global mais rápida e eficientemente (Zhang, 2002). Seja no intercâmbio ou na mistura, não é e não deve ser um simples “transplante” ou “assimilação”, mas sim a criação de “cartões de visita internacionais” da cultura chinesa com suas próprias características distintas.
Como duas das maiores economias do mundo e integrantes importantes do BRICS, China e Brasil possuem grande potencial de cooperação na promoção e no intercâmbio da cultura da MTC. Com base no extenso e crescente interesse do povo brasileiro pela MTC, especialmente pela acupuntura, a futura cooperação entre a China e o Brasil nesse campo é extremamente promissora. Além disso, o papel da MTC está sendo gradualmente percebido pelo mundo no contexto da resposta global à epidemia do coronavírus, e o governo e o público brasileiros terão um conhecimento mais abrangente da cultura da MTC no futuro por meio dos relatos da experiência bem-sucedida da combinação da MTC e ocidental na resposta à epidemia pelos meios de comunicação da China e do Brasil.
Em resumo, a cooperação entre a China e o Brasil na promoção da cultura da MTC tem valores médicos e diplomáticos. No contexto do 10° aniversário da iniciativa “Um Cinturão, Uma Rota”, a disseminação e a promoção da cultura da MTC no Brasil terão uma oportunidade histórica e se tornarão um elo ainda mais importante de ligação entre as populações da China e do Brasil. Os dois países devem continuar a cooperar na promoção da cultura da MTC, estabelecendo conjuntamente a construção de uma “comunidade de saúde” e acelerando a edificação de uma comunidade internacional com valores humanísticos.
Funding source: National Social Science Fund of China
Award Identifier / Grant number: 21ZD07
Agradecimentos
Este artigo é uma realização em fases do projeto de arte principal do Fundo Nacional de Ciências Sociais de 2021 do Fundo Nacional de Ciências Sociais da China (NSSFC), “Pesquisa sobre a inovação do intercâmbio cultural estrangeiro e do sistema de promoção do turismo na nova era” (Projeto nº: 21ZD07), subprojeto “Pesquisa sobre a situação atual e a inovação do sistema de intercâmbio cultural estrangeiro da China”.
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Research funding: This article is a phased achievement of the 2021 National Social Science Fund (NSSFC) major art project “Research on the Innovation of Foreign Cultural Exchange and Tourism Promotion System in the New Era” (Project No.: 21ZD07) sub-project “Research on the Current Situation and System Innovation of Chinaʼs Foreign Cultural Exchange”. The NSSFC played no role in the study design; in the collection, analysis, and interpretation of data; in the writing of the report; or in the decision to submit the report for publication. 本文系 2021 年度国家社科基金艺术学重大项目《新时代对外文化交流和旅游推广体系创新研究》(项目号:21ZD07)子课题《中国对外文化交流现状与体系创新研究》的阶段性成果。
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Author contributions: All authors have accepted responsibility for the entire content of this manuscript and approved its submission.
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Competing interests: Authors state no conflict of interest.
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Informed consent: Informed consent was obtained from all individuals included in this study.
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Ethical approval: The local Institutional Review Board deemed the study exempt from review.
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© 2024 the author(s), published by De Gruyter and FLTRP on behalf of BFSU
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